quarta-feira, 9 de junho de 2010

Era preciso dizer tudo a ele. Contar de tudo o que estava sentindo. Que os dias depois dele não foram mais os mesmos. Que quando estavam longe ela sentia falta e quando estavam perto ela queria uma vida ao lado dele. Não a mesma vida. Uma vida AO LADO dele. Uma vida própria como a que não tinha a muito tempo.
Ela tinha vontade de reviver, de ter prazer nas pequenas coisas.
Mas não era nada fácil. Pois quando estava com ele era como se o mundo todo quisesse dizer a ela seus segredos. Ela sentia tão profundamente que era capaz de chorar sem motivo aparente no meio do restaurante. E ele perguntava o que era. E nem ela sabia. Mas estar com ele tinha lhe feito reviver muita coisa.
Ela sentia uma paixão que a devorava. Uma necessidade de estar sempre colada no corpo dele. Recebendo prazer, oferecendo prazer. Era quando os corpos tudo sentiam e faziam que ela amava mais. Pois não precisava de palavras para expressar.
Ela se sentia presa. Sabia que aquilo tudo era definitivo. E tentava visualizar portas de saída caso as coisas começassem a dar errado.
Ela sentia um medo enorme de que de repente tudo acabasse sem mais nem menos.
Ele havia parado de falar do que sentia. Mas vez ou outra gestos tão delicados, sutis, carinhosos denotavam aquele amor-carinho-paixão que nascia entre eles.
Não era nada fácil. Eles não tinham nada além de um mundo interno intenso, rico para compartilhar. E a necessidade de firmarem no mundo por si sós. E talvez o peso desse 'por si sós' tenha os feito se ancorarem um no outro silenciosamente.
Muita coisa entre eles não havia sido dita.
Mas ambos sabiam que aquilo não era comum.
Ela tinha medo das mentiras dele e ele tinha medo das verdades dela.
Ela tinha medo do silêncio dele e ele se perdia em tanta coisa frívola que ela dizia.
Precisavam um do outro e permaneciam ao lado um do outro. Mesmo sem garantia nenhuma.
Ela, de mansinho, fazia suas preces para que a vida real não atrapalhasse o fluxo daquele encontro inesperado e tão celebrado.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Navegação

Eles haviam se recolhido à sua miséria. Puderam então compreender sua mísera posição na escala de hierarquia dos seres. Destituídos de qualquer dignidade relativa, a miséria reinava absoluta.

E assim, já com as carnes murchas, e com muitas manchas, caminhavam sem qualquer esperança ou sopro de alento. E já não pensavam mais em seu povo. Mal conseguiam carregar ou se lembrar do que eram. Havia ainda, contudo, o brilho dos olhos – que é a primeira coisa que tratam de esconder quando alguém morre.

E o brilho de vida ainda cintilava naqueles olhos como o pulsar primeiro de qualquer vida distraidamente que se torna vida.

Porque o brilho nos olhos é o que lhe mostra a saída. Mataram narciso porque ele se olhava, porque ele queria saber de si observando-se. Chamaram de vaidade isso de querer saber de si. E muitos se enganaram com isso de pecados e vaidades. Vaidade é um pequeno spell que botaram nas pessoas que gostavam de saber de si mesmas.

Porque como passavam muito tempo contemplando a si mesmos ((– assim, toda a sabedoria não liga para o tempo, desdenha do tempo, amadurece no tempo ou se adentra no tempo e até dançando juntos conseguem caminhar perfeitamente.))

E assim, sabendo de si, se olhando no espelho podia compreender que não eram feitos de carnes e peles e músculos e ossos e sangue e órgãos e vísceras. Não eram mero alimento da vida que seguia sobre a superfície do mundo em que pisavam.

Eles eram feitos de sonhos. Mas perderam muito tempo tentando compreender a constituição do que chamavam de corpo. Porque eram escravos do ato de-glutição. Como eram alimento, queriam se alimentar.

Porque eram escravos da água. Não escravos, mas servos. Hipnotizados por aquela matéria que podia ter qualquer forma, porque líquida.

E começaram a se tocar. E começaram a se deliciar consigo próprios. E olhavam o mar e se enxergavam mais. E imitavam as danças que a mãe d´água escrevia nas ondas.

E a Mãe Água não lhes dava de beber seu leite. Mas os banhava e ensinava-os a dançar. A olhar e se deixar ir. A esquecer a gravidade, para logo depois saberem que os pés que botam no chão não precisam estar no chão se não quiserem.

E por terem sempre o pé no chão. No chão sujo de poeira, e por caminharem e seus músculos crescerem. E por cavalgarem e conseguirem falar com cavalos, eles corriam e sentiam o vento e podiam por instantes achar que voavam. Porque seus pés não estavam no chão.

E por tudo isso acharam que no mar existia muito mistério e que não poderiam jamais viver imersos na água. Porque eram feitos de água e nela poderiam se desfazer e se integrar a ela novamente. A mãe. E porque eram filhos - e não a mãe - não poderiam estar em contato direto com ela por muito tempo. Então construíram barcos pra poder navegar sobre ela. E sentir seu cheiro salgado e não temer as tempestades. Mas ela não ensinava tudo. Eles é que se esforçavam para aprender. E porque se esforçavam, ela lhes mostrava através de seu corpo os mistérios que eles ansiavam por saber. A cada mergulhar e a cada navegar.

E ela fingia que acreditava nele simplesmente por alguns momentos de efeitos analgésicos das coisas que ele falava e ela ria e de coisas que ela própria dizia, e se ria dela mesma sem parar tentando fugir do silêncio e da solidão.