segunda-feira, 7 de junho de 2010

Navegação

Eles haviam se recolhido à sua miséria. Puderam então compreender sua mísera posição na escala de hierarquia dos seres. Destituídos de qualquer dignidade relativa, a miséria reinava absoluta.

E assim, já com as carnes murchas, e com muitas manchas, caminhavam sem qualquer esperança ou sopro de alento. E já não pensavam mais em seu povo. Mal conseguiam carregar ou se lembrar do que eram. Havia ainda, contudo, o brilho dos olhos – que é a primeira coisa que tratam de esconder quando alguém morre.

E o brilho de vida ainda cintilava naqueles olhos como o pulsar primeiro de qualquer vida distraidamente que se torna vida.

Porque o brilho nos olhos é o que lhe mostra a saída. Mataram narciso porque ele se olhava, porque ele queria saber de si observando-se. Chamaram de vaidade isso de querer saber de si. E muitos se enganaram com isso de pecados e vaidades. Vaidade é um pequeno spell que botaram nas pessoas que gostavam de saber de si mesmas.

Porque como passavam muito tempo contemplando a si mesmos ((– assim, toda a sabedoria não liga para o tempo, desdenha do tempo, amadurece no tempo ou se adentra no tempo e até dançando juntos conseguem caminhar perfeitamente.))

E assim, sabendo de si, se olhando no espelho podia compreender que não eram feitos de carnes e peles e músculos e ossos e sangue e órgãos e vísceras. Não eram mero alimento da vida que seguia sobre a superfície do mundo em que pisavam.

Eles eram feitos de sonhos. Mas perderam muito tempo tentando compreender a constituição do que chamavam de corpo. Porque eram escravos do ato de-glutição. Como eram alimento, queriam se alimentar.

Porque eram escravos da água. Não escravos, mas servos. Hipnotizados por aquela matéria que podia ter qualquer forma, porque líquida.

E começaram a se tocar. E começaram a se deliciar consigo próprios. E olhavam o mar e se enxergavam mais. E imitavam as danças que a mãe d´água escrevia nas ondas.

E a Mãe Água não lhes dava de beber seu leite. Mas os banhava e ensinava-os a dançar. A olhar e se deixar ir. A esquecer a gravidade, para logo depois saberem que os pés que botam no chão não precisam estar no chão se não quiserem.

E por terem sempre o pé no chão. No chão sujo de poeira, e por caminharem e seus músculos crescerem. E por cavalgarem e conseguirem falar com cavalos, eles corriam e sentiam o vento e podiam por instantes achar que voavam. Porque seus pés não estavam no chão.

E por tudo isso acharam que no mar existia muito mistério e que não poderiam jamais viver imersos na água. Porque eram feitos de água e nela poderiam se desfazer e se integrar a ela novamente. A mãe. E porque eram filhos - e não a mãe - não poderiam estar em contato direto com ela por muito tempo. Então construíram barcos pra poder navegar sobre ela. E sentir seu cheiro salgado e não temer as tempestades. Mas ela não ensinava tudo. Eles é que se esforçavam para aprender. E porque se esforçavam, ela lhes mostrava através de seu corpo os mistérios que eles ansiavam por saber. A cada mergulhar e a cada navegar.

Um comentário:

  1. Que mergulho num passado perfeitamente imaginado e que pode muito bem ser verdade.

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